terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Controle de constitucionalidade, ativismo e segurança jurídica

TASCHETTO, Fernando Maicon Prado. As sentenças aditivas e as sentenças substitutivas - Direito italiano e brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016.

Um dos temas mais sensíveis nos últimos tempos, em termos de discussão do momento em que o poder de o juiz controlar a constitucionalidade de lei vem a resvalar em exercício de função legislativa, é enfrentado no texto ora resenhado, versão comercial da dissertação de mestrado que o autor defendeu perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Professor Luís Afonso Heck, cujo primoroso prefácio minudencia a estrutura da obra.

Os conceitos de "sentença aditiva", como aquela que reconhece a inconstitucionalidade em função de a disposição infraconstitucional haver concedido menos do que a Constituição pretendeu e, pois, conduz o Tribunal a completar o dado lacunoso, e de "sentença substitutiva", como aquela em que o Tribunal, ao declarar a inconstitucionalidade, vem a substituir a solução normativa infraconstitucional por outra, sem que se trate do denominado "efeito repristinatório" da pronúncia da nulidade da lei, provenientes da jurisprudência constitucional italiana, muitas vezes invocados em votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro, são esclarecidos a partir da respectiva localização do contexto em que surgiram.

A obra principia por esclarecer em que consiste o sistema de controle de constitucionalidade na Itália, tanto a partir da configuração do órgão encarregado de o exercer -- a Corte Constitucional --, quanto pelo exame do procedimento, dos possíveis conteúdos das sentenças e, a seguir, vem a tipificá-las, para identificar mais propriamente o objeto de seu trabalho, que são, dentre as variadas espécies do gênero "sentença de acolhimento", as sentenças aditivas, cujas subespécies são as "aditivas de regras" e as "aditivas de princípios" e as sentenças substitutivas.

Examinados os pressupostos para a adoção das sentenças "aditivas" e "substitutivas", enquanto formas de dar à Constituição a máxima efetividade, no sentido de que são adotadas estas soluções porque outra, em face mesmo do texto abstrato da Constituição, não seria possível, a dissertação examina exemplos, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da transplantação desses conceitos, discutindo até que ponto não se encobriria, em seu emprego, o denominado "ativismo".

Embora se trate de trabalho de profundo interesse para o Direito Constitucional e o Direito Processual, ao juseconomista ele interessa por mais de um motivo: 1) primeiro, porque o próprio conceito de "política econômica" pressupõe um sujeito dotado de poder juridicamente apto a adotar as medidas correspondentes e, em se tratando do Poder Público, em especial, a amplitude da sua possibilidade de atuação e, também, o campo em que o controle pode ou não ser exercitado; 2) segundo, porque muitos dos precedentes que o autor traz ao exame, para verificar até que ponto estariam ou não sendo empregadas adequadamente estas noções têm que ver com a própria eficácia da Constituição Econômica, a exemplo tanto da greve dos servidores públicos quanto do caso Raposa Serra do Sol.

domingo, 28 de janeiro de 2018

A república ainda precisa de pensadores no Direito

SORTO, Fredys Orlando [org.]. O pensamento jurídico entre Europa e América - estudos em homenagem ao Professor Mario G. Losano. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2018.


A obra multifária do Professor Mario G. Losano, em si, dispensa apresentações, tanto pela sua quantidade quanto pela sua qualidade, tanto pelo exame de temas ligados à história do Direito quanto pelas reflexões em torno das influências do desenvolvimento científico e tecnológico sobre ele, e isto, com toda a certeza, explica que uma trintena de autores das mais diversas nacionalidades tenha acorrido à presente coletânea.

Abelardo Levaggi trabalha, esmiuçando a obra e o pensamento de Tomás Jofré, a influência de Chiovenda na formação da processualística argentina, aos tempos em que se estava a discutir a autonomização do Direito instrumental em face do Direito material, com todas as consequências que isto teria em termos de valorização do caráter oral, dispositivo e público do processo.

Alessandra Facchi versa a situação da mulher em face das categorias dos direitos humanos -- direitos civis e políticos, direitos econômicos, sociais e culturais -- e a relação entre tais categorias  e a amplitude da autodeterminação que lhe seja assegurada.

Alfonso Ruiz Miguel retoma os dilemas da democracia liberal, com referência especial ao problema da garantia de maior participação dos segmentos do povo no exercício do poder, por um lado, e a proteção, contra maiorias autoritárias, de um núcleo de direitos básicos, trazendo a indeterminação como um dado inexorável que somente teria como ser extinto com a extinção da própria democracia.

André-Jean Arnaud discute a relação entre a estrutura social e a formação do pensamento jurídico, olhos postos, sobretudo, no papel dos juristas durante o período feudal-cristão na Europa, nas transformações verificadas no pensamento jurídico quando da formação dos Estados Nacionais até a quase superação desta noção pelo contexto da globalização, a substituição de conceitos de "identidade" pelos de "diferenciação", de "universalismo" pelos de "globalismo", as tensões entre o "pluralismo de fontes" e a centralização da produção do Direito no Estado.

Ángeles Solanes Corella, retomando um debate muito presente na obra de Bobbio e também do homenageado, discute o papel da "função promocional do Direito" -- o chamado "Direito premial" -- no contexto do Estado Social, abalando a ênfase que se costuma dar ao caráter coativo da norma jurídica.

Carla Faralli resenha os debates em torno das concepções contratualistas do Direito e do Estado, desde a Antiguidade até a Contemporaneidade, indicando, hoje, os problemas da extensão das noções tipicamente contratuais para a fundamentação da autoridade pública, em especial as concernentes à capacidade para obrigar-se.

Carlos E. Dalpiazzo fere o problema da viabilização das contratações públicas e da solução dos conflitos a elas inerentes mediante o estabelecimento de uma uniformização ("convergência") de regimes jurídicos e de meios tecnológicos.

Francesco Belvisi, em face dos conflitos que emergem em sociedades nas quais múltiplas culturas convivem entre si e, por isto mesmo, do próprio "paradoxo da tolerância", debate a eficácia do princípio da não-discriminação em razão da identidade e a proteção dos valores erigidos como fundantes da ordem constitucional.

Francisco Javier Ansuátegui Roig, ao estudar as condições de uma cidadania baseada em direitos, retoma a ligação necessária entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, a imprescindibilidade de um aparato para a realização desses mesmos direitos, que outros, que não o titular, nem sempre estão muito dispostos a reconhecer espontaneamente,  a democracia e suas tensões.

Fredys Orlando Sorto faz uma releitura de Montesquieu a partir de sua obra principal, enfatizando seja o seu papel enquanto voltado a, no campo do pensamento social, procurar extrair suas proposições a partir da generalização de elementos comuns a mais de um ente concreto, para a compreensão do espírito das leis que regem os povos, o seu "não-contratualismo" na explicação da origem da sociedade, o estabelecimento da tipologia das formas de governo, atualizando, no particular, Aristóteles, a contribuição, na teoria da separação dos poderes, do Judiciário enquanto função estatal separada das demais.

Gilberto Bercovici introduz o tratamento do solo rural e urbano na Constituição de 1988, bem como as tensões decorrentes da necessidade de, ao mesmo tempo em que se assegura o caráter de direito fundamental à propriedade privada, ser promovida a realização de uma política de utilização do espaço que venha a reduzir o potencial conflitivo, ante o caráter de exclusividade que é inerente a esse mesmo direito sobre bem escasso.

Hugo Cancino dedica seu estudo às reflexões do homenageado sobre a identidade jurídico-política da América Latina, no quanto esta identidade, em muito, traduz uma adaptação dos elementos europeus às conveniências das oligarquias locais.

Jacques Ziller versa a relação entre o regime de proteção de dados informáticos na União Europeia e sua repercussão em face dos regimes de países que não a integram, trazendo a questão da transferência de dados com a Argentina.

João Maurício Adeodato estuda as questões envolventes das retóricas empregadas nos discursos sobre o Direito no Brasil, nascidas basicamente de um casamento entre a "escolástica", com seu apego às formas e ao culto da autoridade, e o "praxismo", bem como as falácias mais frequentes, quer no texto que se apresenta ao foro, quer no texto que se produz com o objetivo de refletir sobre o Direito.

Klaus Kempf traz sua contribuição discutindo o advento e o desenvolvimento do acervo da "Biblioteca Híbrida", isto é, a que se compõe tanto de acervo físico quanto digital, estudando o caso específico da Biblioteca Estatal da Baviera.

Luigi Bonanate debate o tema das tensões geradas pelas noções de "identidade", "cidadania" e "humanidade", no que toca à própria sobrevivência da democracia, tanto no âmbito nacional como no supranacional.

Luís Lloredo Alix. realiza um comentário à obra mais conhecida de Rudolf von Jhering (A luta pelo Direito), identificando um desdobramento das ideias do Catedrático de Göttingen no sentido de tratar a defesa dos direitos subjetivos como um dever moral que repercutiria na saúde do próprio sistema político.

Maria Áurea Baroni Cecato retoma a temática da efetividade e essencialidade dos direitos fundamentais do trabalhador na Constituição brasileira de 1988, a partir da sua consideração como ligada à proteção da dignidade da pessoa humana.

María Belén Cardona Rubert enfrenta o tratamento jurisprudencial da proteção de dados pessoais relativos ao trabalhador, em especial no que tange a filiação sindical e saúde, e os limites em que o poder de direção do empregador pode utilizar tais dados sem perfurar o direito do trabalhador à intimidade.

Maria Cristina Hermida del Llano, a partir das reflexões de Francisco de Vitória sobre a igualdade natural dos seres humanos e a própria concepção universalista do que seja um ser humano, trabalha as projeções de tal contribuição nas questões concernentes a direitos humanos e, em especial, ao caso das migrações.

Martin Laclau realiza o percurso acerca da formação das teses de Heidegger e Gadamer que têm influenciado as tendências contemporâneas da hermenêutica jurídica, num progressivo abandono das posturas normativistas tradicionais.

Miguel Ángel Ciuro Caldani, diante de um mundo marcado pela velocidade de mudanças decorrentes da tecnologia, aponta para a superação dos referenciais teóricos normativistas, próprios para o mundo do século XX, conduzindo à adoção de uma teoria trialista do mundo jurídico, na qual se apresentam as dimensões sociológica, normológica e dikelógica, lembrando em muito o tridimensionalismo de Miguel Reale.

Nelson Saldanha suscita a questão das peripécias do conceito de Direito desde o jusnaturalismo, passando pelos positivismos da Escola de Exegese em confronto com a Escola Histórica, bem como pela Pandectística, pelo normativismo e suas derivações, até chegar ao pragmatismo anglo-saxão contemporâneo e à teoria da argumentação, que tem em Alexy o nome principal, salientando o papel da sociologia jurídica, cujo desenvolvimento mostra o quão injustificável é a teoria geral do Direito atual ignorar suas contribuições, bem como a de pensadores do Direito de que dela se ocuparam, como Gény e Esser.

Norberto C. Dagrossa traz o aporte acerca das situações em que se verificou a vacância do Vice-Presidente da República na Argentina, e os modos por que se procurou resolvê-las, apontando para os riscos de acefalia a cada vez que um Vice vem a estar impedido de exercer o poder em que investido com a queda do titular.

Oscar Sarlo trabalha a tensão existente entre a teoria do Direito voltada à dogmática e a teoria do Direito centrada na argumentação dos respectivos artífices, referindo como questão central a da própria racionalidade tanto do discurso jurídico quanto do discurso sobre o Direito.

Paolo Garbarino recorda a presença de Bobbio no departamento de Filosofia do Direito da Universidade de Torino, mesmo depois que, em 1972, veio a ser substituído na regência da cátedra por seus discípulos Umberto Scarpelli e Enrico de Rubilant, o seu papel na construção do pensamento jurídico enquanto um dado a dialogar com outros ramos da ciência social, mesmo a partir de Kelsen, e no estabelecimento da linha editorial de livros jurídicos junto à Casa Einaudi.


Patricia Cuenca Gómez trabalha, a partir de Kelsen, a presença do dado de fato do poder enquanto fator inafastável da efetivação ou da frustração da eficácia do ordenamento jurídico, por mais sofisticado que este pretenda ser.

Ricardo Adriano Massara Brasileiro e Marco Antonio Sousa Alves, a partir da perspectiva do Direito enquanto discurso que se institucionaliza, versam as influências que o suporte do discurso - da oralidade à escrita e, depois, à digitalização - termina por manifestar sobre a própria substância do discurso.

Torquato Castro Júnior vem a trabalhar o papel das metáforas na construção da obra jurídico-filosófica de Pontes de Miranda.

Segue-se a relação da produção do homenageado, alcançando nada menos que 570 escritos.

Como se pode ver, a multiplicidade de temas versados nesta obra corresponde a todos os campos sobre os quais se debruçou o homenageado, e nos tempos atuais, em que os imediatismos parecem substituir os conceitos meditados e construídos para evitar as soluções à base da passionalidade, textos como este que ora se resenha vêm a parecer-se com a coruja de Minerva que, na metáfora hegeliana, alça voo no crepúsculo da Razão. A frase que levou Lavoisier à guilhotina não deve ser repetida.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O necessário resgate dos direitos fundamentais

NASCIMENTO, Filippe Augusto dos Santos. Direitos fundamentais e sua dimensão objetiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016.

Nos tempos atuais, em que cada vez mais se procura, em nome de promessas não cumpridas pela democracia, de um lado, promover uma relativização dos direitos fundamentais ou, no máximo, somente reconhecer como tais aqueles que se enquadram como "direitos civis e políticos", o autor, Defensor Público Federal e Mestre pela Universidade Federal do Ceará, traz um aporte digno de reflexão, confrontando, ainda, as proposições abstratas da teoria com as construções realizadas pelos Tribunais na resolução dos embates concretos de interesses. Num primeiro momento, causa uma certa estranheza para quantos, como é o caso do próprio resenhista, estão acostumados com a terminologia dos manuais de teoria geral do Direito a expressão "dimensão objetiva dos direitos fundamentais", tendo em vista a famosa distinção entre o "direito subjetivo" enquanto posição jurídica ativa, ou enquanto interesse juridicamente protegido, e o "direito objetivo", enquanto a disciplina em abstrato das relações jurídicas, a que se referem, inclusive, expressões como "fontes do Direito", "ramos do Direito", "Direito Positivo". Entretanto, a estranheza se supera, tendo em vista que se trata de identificar o papel dos direitos fundamentais para além do caráter de atendimento a pretensões dos respectivos titulares, sejam eles um sujeito individual, um sujeito coletivo ou um sujeito difuso. O texto trabalha a noção de “dimensão objetiva dos direitos fundamentais” enquanto concretização dos valores objetivamente consagrados e, a partir da ideia de “dimensão objetiva”, realiza a construção no sentido de reduzir a margem de indeterminação da atuação dos Poderes Públicos, tornando, antes, como parâmetro de validade para qualquer das manifestações destes, a aptidão para não frustrar ou para melhor realizar os “direitos fundamentais”. Aponta como derivações da “dimensão objetiva” a eficácia vinculante, a eficácia irradiante e a eficácia processual participativa. Temas como a necessidade de parâmetros objetivos na compatibilização de valores aparentemente antagônicos, como é o caso da valorização do trabalho em face da liberdade de iniciativa (p. 79-80), do exercício de competências como o fomento da produção agrícola compatibilizando-o com a valorização do trabalho e com a proteção do meio ambiente (p. 116), do reconhecimento da presença do poder mesmo em relações que se travam entre particulares, de tal sorte que se irradia a questão dos direitos fundamentais para elas, o papel do processo de caráter objetivo como apto a ofertar parâmetros para a efetividade da Constituição como um todo, e da abertura à participação de quantos se sintam aptos a contribuírem para que o processo objetivo alcance a decisão mais justa em termos de realização de tais valores. A presença destes temas, hoje, em que a Racionalidade passa a precisar de defesa, em um trabalho como o ora resenhado, independentemente de se não o subscrever "in totum" - o resenhista, por exemplo, não se encontra dentre os que consideram os princípios e regras como espécies do gênero "norma", e sim dentre os que os tratam, tradicionalmente, como instrumentos hermenêuticos em relação aos textos normativos -, vem a apresentar-se como de leitura obrigatória, ante a excelência da argumentação, a profundidade da pesquisa jurisprudencial e a qualidade da bibliografia utilizada.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A "pós-modernidade" e o futuro do Direito na responsabilidade civil

DONNINI, Rogério. Responsabilidade civil na pós-modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2015.

O autor, Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, versa as questões que têm angustiado, nos últimos tempos, quantos têm se preocupado com  a insuficiência dos conceitos tradicionalmente construídos pela ciência jurídica para o enfrentamento dos conflitos que nascem dos avanços tecnológicos, com as transformações em todos os campos das relações sociais. O tema de interesse de mais de um ramo do Direito - a responsabilidade civil - vem a merecer, na presente monografia, uma tentativa de ser equacionado em face deste quadro.
Principia pelo exame da vulgarizada expressão "pós-modernidade", para designar um contexto em que as transformações decorrentes da tecnologia se apresentam em grande velocidade, afetando relações cujos termos pareciam solidificados pela tradição, como é o caso das familiares, e as próprias motivações para travarem-se tanto as relações de trabalho como a emergência do denominado homo ludens numa sociedade que parece estar sempre engajada em um espetáculo, que parece estar em um interregno, uma constante transição de uma situação incerta para algo que não se tem como precisar o que seja, e que tem como característica essencial o risco. As noções de estabilidade, certeza, segurança, próprias do contexto "moderno", voltadas a um modelo legislado, passam a demandar o estabelecimento, no ordenamento jurídico abstrato, de parâmetros mais gerais, indeterminados, a cobrarem do julgador uma responsabilidade maior na solução fundamentada dos conflitos de interesses, introduzindo, inclusive, elementos morais para, na aplicação desses parâmetros, ofertar a solução mais justa. Retoma a questão da insuficiência da culpa enquanto fundamento da responsabilidade civil, traduzindo, antes, o "neminem laedere" uma expressão, cada vez mais, do princípio da solidariedade, a partir da identificação da multiplicação das formas de se verificarem lesões a interesses legítimos em função dos avanços da tecnologia, por um lado, e, por outro, do próprio óbice que tais lesões representam à postulação da "busca da felicidade" enquanto uma das mais antigas, embora variável em sua expressão valorativa, de cada ser humano. Tal busca, segundo o texto, poderia ser inferido a partir da conjugação das categorias tradicionais do "bem comum" a que se refere o artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, e da dignidade da pessoa humana a que se referem vários dentre os dispositivos da Constituição brasileira de 1988, máxime o inciso III do artigo 1º. Liga, outrossim, a ideia da responsabilidade, enquanto voltada ao restabelecimento do equilíbrio rompido pelas lesões, à concreção da felicidade, por traduzir a prática da lesão e a desproteção das vítimas respectivas a própria negação da dignidade destas. Elenca, a seguir, critérios aptos a constituírem meios dissuasivos à atividade danosa, trabalhando, ao lado do valor que, efetivamente, recomponha o dano, o montante do desestímulo à repetição das lesões, bem como a categorização dos danos morais em subjetivo, biológico e existencial. A temática da perda do controle do ser humano sobre o que fazer com o seu tempo, a possibilidade de se verificarem lesões em tempo integral, constante, como é o caso do cyberbullying, do stalking, do mobbing, a redução do tempo destinado ao lazer, todas estas questões vêm a comparecer às considerações do autor.
Não restam dúvidas de que o trabalho que temos sob exame tem os méritos de mostrar, dentre outras coisas, que não há referencial mais impróprio ao Direito do que a denominada "natureza das coisas", porquanto os termos das relações passam a ter, com o passar do tempo, modificados não apenas os respectivos fundamentos, como também a própria valoração. Por outro lado, elogiável a busca de um referencial objetivo para a solução de questões como as que acolhe sob a rubrica "lesões em tempo integral", bem como a construção da noção de "justiça protetiva" enquanto fundamento para a introdução dos "punitive damages" entre nós, sem que a indenização se venha a converter em meio para o enriquecimento de demandistas habituais. Há pontos merecedores de sérias ressalvas, como é o caso da introdução do dado de "moralidade" no Direito, quando a separação entre o Direito e a Moral se deu precisamente para que a individualidade de cada ser humano não tivesse de se submeter à subjetividade de outros seres humanos. A própria distinção entre o dano e o simples desconforto, por outra parte, parece ser tida como esmaecida, quando, em verdade, tal distinção toca ao dado correspondente à inexistência de decisões que estejam desprovidas de efeitos colaterais, de tal sorte que sempre haverá, em alguma medida, um desconforto.Por outro lado, a própria questão da substituição da lei pelo ativismo judicial - que a monografia, a bem de ver, explica, mas não defende - se põe quanto ao papel do princípio da legalidade enquanto instrumental à segurança do cálculo econômico, sempre recordado tanto por José Joaquim Gomes Canotilho quanto por Eros Roberto Grau.

sábado, 9 de julho de 2016

A ante-sala da globalização na obra de Epitácio Pessoa

FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; MIALHE, Jorge Luís; JOB, Ulisses da Silveira [org.]. Epitácio Pessoa e a Codificação do Direito Internacional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2013.

O caso de Epitácio Pessoa, que praticamente ocupou todos os cargos públicos que se põem à disposição do bacharel em Direito no Brasil, e de seu Projeto de Código de Direito Internacional Público, interessou a este grupo de estudiosos, que organizou esta coletânea a partir da seguinte estrutura: o significado e a repercussão da obra do homenageado, a obra em si e a respectiva biografia. A contribuição para a História do Direito Internacional Público e a compreensão desta contribuição brasileira veio a ser o mote da respectiva confecção.

Marcílio Toscano Franca Filho, ao emitir pronunciamento "à guisa de introdução: algumas questões preliminares e metodológicas", analisa a biografia e o papel desempenhado, nas múltiplas facetas de sua vida pública, por Epitácio Pessoa, e situa a importância de se conhecer e discutir o Projeto de Código de Direito Internacional Público por ele elaborado em 1911, num contexto em que cada vez mais se internacionalizam as relações jurídico-econômicas (p. 32-3).

O primeiro estudo, da lavra de Alessandra Correia Lima Macedo Franca, sobre "a jurisdição, a imunidade dos Estados e o espaço da relatividade: do código à rede", examina as vicissitudes da parêmia "par in parem non habet imperium", partindo de uma concepção de imunidade jurisdicional absoluta, assinalando no Projeto de Código de Direito Internacional Público uma das primeiras tentativas de disciplinar o assunto, passando pela distinção entre "atos de império" e "atos de gestão", encaminhando-se para os casos de exceção à regra imunitária, como é o caso das "Regras de Hamburgo", urdidas em 1891, pelo Instituto de Direito Internacional, o dissenso das legislações acerca da extensão da imunidade em sede trabalhista, a caracterização da execução forçada como espaço de resistência da imunidade absoluta e a dificuldade da aplicação ou não aplicação desta em face dos direitos humanos, diante do debate que se trava entre universalistas e relativistas neste campo.

Alice Rocha da Silva examina o modo como se procurou equacionar "a responsabilidade internacional do Estado no Projeto de Epitácio Pessoa", salientando a tendência à ampliação da área a ser coberta por tal sistema de responsabilização, especialmente diante do aumento do espectro dos direitos humanos, a importância da disciplina da responsabilidade na mitigação do estado de indeterminação nas relações internacionais, a evolução das bases da responsabilidade, a equiparação dos estrangeiros aos nacionais para o efeito de acesso à ordem jurídica interna em cada Estado, os casos em que a guerra civil poderia render ensejo à responsabilidade, a exigência de esgotamento dos recursos do direito interno, o modo de se operar a reparação dos danos e a imputação, ao Poder Central, da responsabilidade pelos atos das entidades locais, no contexto dos Estados Federais no âmbito internacional.

"Os prisioneiros de guerra no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa" ocupam a atenção de Érika Seguchi, que os situa no contexto da mitigação da atrocidade do conflito armado, olhos postos tanto no Direito da Convenção de Genebra como no Direito da Convenção de Haia. Aponta para a influência desta última na sistematização feita por Epitácio Pessoa, com a definição do conceito de "prisioneiro de guerra", da respectiva identidade, da submissão respectiva às leis, ordens e regulamentos vigentes no espaço dominado pelos captores, a questão do sustento dos prisioneiros, do trabalho que lhe pode e que não lhe pode ser exigido, do tratamento a ser dado em caso de tentativa de fuga, a prestação de assistência religiosa e por entidades humanitárias, sobre a centralização das informações acerca das vicissitudes dos prisioneiros, inclusive óbitos, salientando, ainda, a influência dos artigos redigidos pelo jurista brasileiro na atuação da Agência Internacional dos Prisioneiros de Guerra, criada pela Cruz Vermelha Internacional em 1914.

Eugênio Vargas Garcia faz a narrativa da experiência de "Epitácio Pessoa diplomata: de Versalhes ao Catete", quando o protagonista desta coletânea, ao participar da Conferência de Paz subsequente à I Guerra, em 1919, entrou em tratativas com o Presidente Woodrow Wilson, dos EUA, para a obtenção do reconhecimento da dívida da Alemanha decorrente do confisco do produto da venda de sacas de café estocadas em portos europeus e da incorporação de navios alemães apreendidos à marinha mercante brasileira, além de acompanhar da formação da Liga das Nações e de ser eleito, ainda em missão diplomática, para a Presidência do Brasil.

Fredys Orlando Sorto, ao comentar "a condição da pessoa humana no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", indica, na obra deste, este ponto mais conforme à doutrina tradicional do Direito Internacional Público, que somente reconhecia personalidade aos entes dotados da capacidade de fazer a guerra e celebrar tratados, isto é, os Estados, e contrasta-o à evolução doutrinária que, principalmente diante do desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, reconhece a personalidade no âmbito internacional também aos indivíduos.

Gustaaf Janssens, ao comentar a relação pessoal entre o Presidente Epitácio Pessoa e o rei belga Albert I, bem como a solidariedade prestada pelo Brasil à Belgica em 1914 quando do ataque perpetrado pela Alemanha e o estabelecimento de parcerias comerciais que renderam ensejo à recuperação do reino europeu, salienta o traço comum aos dois governantes quanto à preferência pelas soluções da concórdia e da conformidade ao Direito, e aos esforços por que por meios pacíficos se resolvessem as controvérsias internacionais.

Já Gustavo Ferreira Ribeiro, a quem coube examinar "o comércio internacional no Projeto de Código de Epitácio Pessoa", contextualiza o Brasil no comércio internacional na transição do século XIX para o século XX, quando era exportador, principalmente, de café, ensaiando diversificação no que toca, por exemplo, à borracha, a experiência brasileira em tratados bilaterais de amizade, comércio e navegação,bem como de participação nas Conferências Pan-Americanas (1889-1890, 1901-1902, 1906, 1910, 1923 e 1928) e a mudança do eixo diplomático brasileiro de Londres para Washington durante a gestão, à frente o Ministério das Relações Exteriores, do Barão do Rio Branco, quando foi cometida a Epitácio Pessoa a tarefa de confeccionar o Código, orientando a disciplina do comércio internacional, principiando pelo tratamento da "liberdade de trânsito", ressalvando o poder dos Estados disciplinarem, como bem lhes aprouvesse, o comércio uns com os outros, a liberdade de comércio marítimo, desde que respeitadas as disposições de natureza fiscal, sanitária e policial, a medida do tratamento igualitário entre nacionais e estrangeiros, a uniformização de pesos e medidas, apontando para a semelhança com as soluções albergadas no GATT.

Ao dedicar-se João Carlos Jarochinski Silva ao estudo sobre "a guerra civil no Código de Epitácio Pessoa", aponta para a tentativa de se estabelecer um parâmetro para a disciplina das relações com terceiros países em tais contextos, sobretudo considerando as experiências de conflagrações vivenciadas pelo protagonista da coletânea, buscando, em primeiro lugar, evitar a definição normativa do conceito de guerra civil, bem como os deveres de não intervenção dos Estados estrangeiros, regulando, ainda, o reconhecimento do estado de beligerância, de tal modo que são atraídas, em relação aos revoltosos, as disposições relacionadas ao direito da guerra.

"O reconhecimento da beligerância no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa" é explorado por Jorge Luís Mialhe, ao situar tal conceito no contexto da preocupação de estabelecer regras de conduta para a guerra, minimizando, assim, os seus efeitos colaterais, sobretudo em relação às populações civis, indicando os precedentes internacionais de tentativa de codificação do Direito Internacional Público, salientando a contribuição epitaciana, bem como a atualidade do conceito de beligerância, no mínimo, para que mesmo a guerra civil não se converta no teatro em que vigora a regra segundo a qual tudo é permitido contra o vencido, trazendo ainda os problemas atuais do procedimento e dos efeitos do reconhecimento deste estado.

A contribuição de Lilian Castillo volta-se aos direitos e deveres dos Estados no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa, assinalando a influência, neste, dos conceitos desenvolvidos por Johann Kaspar Bluntschli, embora avançando em domínios sequer cogitados por este último, como a alusão a um direito dos Estados proverem a respectiva conservação e prosperidade e o dever respectivo de não utilizarem símbolos de outros, marcando o Projeto, como um todo, diante das soluções adotadas em termos de Tratados, como demonstrativo de um sólido conhecimento do Direito Internacional e de uma efetiva capacidade de inovar.

Liliana Lyra Jubilut, ao comentar "o conceito de soberania: modificações e responsabilidade", trabalha a evolução teórica deste fundamento do Direito Internacional Público, a partir do século XVI, e da evolução de sua compreensão na prática das relações internacionais desde a Paz de Westfália, realiza a análise da variação das limitações a que se pretendeu submeter a soberania nos âmbitos interno e externo, bem como do tratamento procedido pelo Projeto Epitácio Pessoa às noções de "domínio reservado", "não intervenção", "igualdade entre os Estados" e "responsabilidade", examinando, a seguir, a evolução do Direito Internacional Privado no pós Segunda Guerra, com a criação da ONU, o período da Guerra Fria e a contínua preocupação em não se estabelecer sinonímia entre "soberania" e "onipotência" (p. 265), no que permaneceria atual a preocupação do homenageado.

Luciana Pessanha Fagundes examina os "rituais de hospitalidade e encenações da história: visitas de Chefes de Estado no Governo de Epitácio Pessoa (1919-1922)", partindo do pressuposto de que visitas desta natureza teriam como escopo a construção de alianças, e analisa o que significaram elas num contexto de consolidação de uma política externa brasileira voltada aos EUA, bem como os próprios acordos comerciais firmados com a Bélgica - de que teria sido também decorrência a instalação, em 1921, da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira - e o fortalecimento dos vínculos de amizade com Portugal, então ainda combalido pela crise que, em 1926, iria render ensejo ao protagonismo de um Oliveira Salazar.

Marcelo D. Varella, ao versar o "Direito Humanitário no início do século XX e a codificação de Epitácio Pessoa", salienta que esta, não obstante não tivesse, no particular, inovado, tomou posição em temas polêmicos à época, como a proteção da população civil, as garantias desta e dos servidores públicos nos territórios ocupados, os direitos dos feridos e do pessoal ligado à prestação dos serviços de saúde, os direitos e deveres em relação aos territórios ocupados, de tal sorte que a sua ousadia consistiria em trazer tais posições para o "corpus" sistematizador.

O estudo "sobre a linha: o Código de Epitácio, o tema da fronteira e o Direito Internacional do Espaço", de Marcílio Toscano Franca Filho, examina o problema da delimitação territorial da soberania a partir da compreensão geométrica da linha e de sua função, separando superfícies, não desempenhando papel diverso no que tange à superfície onde se exerce a autoridade estatal, para perscrutar, a seguir, de que modo foram as questões concernentes aos requisitos para a demarcação e delimitação de fronteiras, bem como para o respectivo desaparecimento, foram equacionadas no Projeto Epitácio.

Ao discorrer sobre o tratamento da "propriedade intelectual no Projeto de Código de Direito Internacional de Epitácio Pessoa", salienta Maria Edelvacy P. Marinho as características peculiares do bem imaterial, a expansão da proteção deste para além das fronteiras dos Estados, a distinção, neste campo, entre a concorrência das legislações entre si e a cooperação internacional, a inserção da temática no artigo 278 do Projeto, pressupondo a distinção dos regimes de propriedade industrial, de um lado, e de propriedade artística e literária, de outro, a modificação da metodologia de elaboração dos Códigos de Direito Internacional Público (a cargo de Epitácio Pessoa) e de Direito Internacional Privado (a cargo de Lafayette Rodrigues Pereira), em 1912, que conduziu a que a matéria viesse a ser versada, mais tarde, no Código Bustamante.

Matheus de Oliveira Lacerda, ao comentar "a codificação do Direito Internacional Público: a materialização do padrão realista jurídico-pragmático da política externa brasileira", discute as origens do panamericanismo, o pragmatismo brasileiro na condução de sua política externa em meio a potências militarmente mais poderosas, e o papel desta prática na elaboração do Projeto Epitácio Pessoa.

Cabe a Rogério Duarte Fernandes dos Passos versar "a estruturação da nacionalidade e a condição jurídica dos nacionais e estrangeiros à luz do Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa", retomando as noções de nacionalidade e cidadania, mostrando o tratamento particularizado da questão da nacionalidade em relação à pessoa humana, aos navios e aeronaves, aos efeitos decorrentes da cessão territorial, à situação da mulher casada e dos filhos menores, à proteção diplomática, à responsabilidade dos nacionais por fatos verificados no exterior, à condição jurídica do estrangeiro, bem como dos problemas relacionados à aquisição de bens imóveis por pessoas jurídicas de direito público estrangeiras.

Rui Décio Martins versa, em pormenor,  o tema do nascimento dos Estados para os efeitos do Direito Internacional Público, até hoje carecedor de uma disciplina procedimental específica, regrado somente pela prática consuetudinária, no estudo intitulado "Dos Estados. Reconhecimento. Ontem e hoje".

Salem Hikmat Nasser e Adriane Sanctis de Brito, ao estudarem a "unidade, fragmentação e regimes jurídicos: narrativas de hoje e de Pessoa", examinam a busca da sistematização mediante o Projeto, em especial, como uma aspiração voltada a reduzir as colisões presentes em um contexto de relações jurídicas disciplinadas de modo fragmentário.

A contribuição, no tocante às relações internacionais, de "Rui, Epitácio e Fernando Henrique: do Brasil para o mundo" é dissecada minuciosamente por Susana Camargo Vieira.

"Epitácio Pessoa e o Direito Internacional americano" é o texto que cabe a Ulysses da Silveira Job, contextualizando a elaboração do Projeto em meio a uma identidade das Américas que se pretendia afirmar ante a comunidade internaciona, respeitando os princípios e valores presentes já em tratados preexistentes e harmonizando-os num texto único, adiantando-se a seu tempo em várias nuanças, como o status da mulher casada, medidas concernentes à circulação física, disciplina das soluções pacíficas de controvérsias internacionais, terminando por um comentário à sua atuação em questões de interesse americano.

Os "apontamentos do Direito dos Tratados no Projeto de Código de Direito Internacional Público de Epitácio Pessoa",  a cargo de Valério de Oliveira Mazzuoli, encerram esta primeira parte, salientando a influência do Projeto, neste campo, sobre a Convenção de Havana de 1928, bem como os pontos que vieram a ser superados, em especial no tocante à forma e à validade dos Tratados, com a evolução do Direito Internacional.

A seguir, é reproduzido o Projeto comentado nos estudos anteriormente resenhados.

Por fim, o retrato pessoal do jurista e político a que esta obra é dedicada, com a nota bibliográfica assinada por Joyce Sant'Anna Simões e Renato José Ramalho Alves, bem como fotografias ligadas à sua atuação no âmbito das relações internacionais.


Num momento em que se discutem temas como a permanência da distinção entre civilização e barbárie, da necessidade ou da superação da era das codificações, dos abalos que a própria ideia de soberania sofre diante da homogeneização jurídica do espaço econômico, a que se dá o nome de globalização, em que povos ocupantes de espaços territoriais buscam, por um lado, o reconhecimento e, por outro, comparecem forças não ligadas a nenhum Estado que se tornam atores impensados aos tempos em que se celebrou a Paz de Westfália, uma obra como a presente mais que se justifica, como uma das grandes contribuições brasileiras na tentativa de reduzir o quanto de arbitrário que ainda existe no âmbito das relações internacionais.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Negócio fiduciário como ponte entre sistemas jurídicos

FOERSTER, Gerd. O "trust" do direito anglo-americano e os negócios fiduciários no Brasil - perspectivas de Direito Comparado (considerações do acolhimento do "trust" pelo Direito brasileiro). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.
 
A curiosidade que desperta, em meio aos que vivem no sistema de direito predominantemente legislado, acerca do funcionamento dos sistemas predominantemente baseados na inferência de regras gerais a partir da solução de problemas concretos e o movimento de homogeneização jurídica do espaço econômico denominado "globalização" tornam extremamente oportuna a publicação da versão comercial da tese de doutoramento que o autor defendeu junto à Universidade de Barcelona.
Principia a obra pela explanação das características do Common Law, indicando seu surgimento a partir da conquista pelos normandos de Guilherme I, substituindo os direitos tribais dos anglos, saxões e vikings (que se haviam imposto desde o término da presença romana na Grã-Bretanha), centralizando em torno do novo rei a administração e confiando aos Tribunais Reais de Justiça, por oposição ao direito canônico e aos costumes e cortes dos senhores locais, a elaboração do ordenamento comum a toda a Inglaterra (p. 39-40). Refere a fase inicial como marcada pela sobrevalorização das fórmulas processuais, a fim de que, das circunstâncias dos casos concretos e dos contratos, fossem inferidas as regras para a composição dos litígios (p. 43-6), indicando a formação da Equity como o juízo do Rei, com o auxílio do Chanceler, a partir do século XVI, para a correção de eventuais inadequações ou insuficiências ou injustiças aberrantes por parte das Cortes (p. 49), juízo, este, que seguiu em muito o processo canônico, dada a origem, em regra, clerical do Chanceler, e teve seu apogeu nos períodos absolutistas dos Tudors e Stuarts, tendo reduzido seu âmbito de aplicação com o fortalecimento do Parlamento (p. 51-2). Com a identificação de uma estrutura dualista como constitutiva do Direito inglês - Common Law e Equity -, apresenta como contribuições desta última a determinação da execução das obrigações de fazer previstas em cláusulas contratuais, o reconhecimento da possibilidade de vício da vontade de uma das partes em virtude de coação moral, a possibilidade de uma pessoa, proprietária, entregar a outra um bem para ser administrado em prol de um terceiro, a busca forçada do cumprimento de promessa, a subrogação no crédito daquele que pagasse obrigação alheia, a recuperação de bem deixado em depósito depois de morto o depositário, estendendo-se até a formação da lex mercatoria (p. 57-9). Aponta, em caráter subsequente, o papel que tiveram os Judicature Acts, a partir especialmente de 1875, para atribuir a todas as jurisdições inglesas a competência para a aplicação tanto do Common Law quanto da Equity, de tal sorte que esta continua a disciplinar os campos concernentes a sociedades comerciais, falências, lioquidação de heranças e aquele incorporou as regras de intervenção nos contratos, continuando a disciplinar matéria criminal, direito contratual e responsabilidade civil, por um lado, e, por outro, o ingresso de matérias que exigiram a utilização de outros critérios, como a trabalhista e previdenciária, avançando no sentido de um direito legislado se afirmar, principalmente após o New Deal, que não teria deixado de influenciar, também, o Reino Unido (p. 60-2). Traz a cotejo o papel da submissão prévia dos juízes, no sistema "romanístico", a parâmetros fixados em caráter abstrato pelo legislador, e o papel de construtores da "legal rule", a partir dos fatos da causa e das "legal rules" preexistentes, cotejando com os precedentes pertinentes, do juiz no sistema "anglo-saxão" (p. 63-6), bem como o papel mais acentuado das academias na formação dos conceitos naquele sistema em comparação com o papel mais forte dos praxistas no segundo (p. 66-8). Observa que os movimentos de integração jurídica no seio da civilização ocidental conduziriam a uma flexibilização na visão estritamente legalista nos países vinculados à "família romano-germânica", especialmente pela introdução do "trust" no direito interno de vários países do continente (p. 69-70). Partindo da premissa de que o direito ´produto do contexto "sócio-econômico" da sociedade em que emerge, passa a versar o "trust" a partir do instituto de que derivou, o "use", nascido no Direito feudal inglês, em que o senhor dividia a extensão conquistada entre os seus lugares-tenentes (tenants), que a possuíam mediante o pagamento de uma renda, e, por seu turno, estes mesmos lugares-tenentes concediam a seus subalternos partes das extensões que lhes cabiam, a título limitado (p. 73-4). Informa a existência de dois tipos de tenure, a situação jurídica do tenant: a free tenure, mercê da qual se podiam quantificar os serviços a serem prestados pelo vassalo ao suserano, com a possibilidade de alienação dos direitos de posse a terceiros, mediante doação, compra e venda ou permuta, e a unfree tenure, na qual não existia tal possibilidade (p. 75). Traz à colação, ainda, a noção de estate, como mensurador da intensidade do vínculo entre o proprietário e o tenant, distinguindo as primeiras quatro modalidades reconhecidas pelos Tribunais de Common Law - o fee simple estate, o fee tail estate, o life estate e o estate pur autre vie - e uma quinta modalidade desenvolvida a partir do século XIV, o leasehold estate, que mais se assemelharia a um arrendamento (p. 75-6). Aponta para um dos traços distintivos entre o direito romano-germânico, para o qual, enquanto se admitiria livremente a formação de contratos, seria exigível a tipicidade cerrada para os direitos reais, e o direito anglo-saxão, para o qual seria perfeitamente admissível a criação de direitos reais pela via convencional (p. 77-8). Desta forma, explicar-se-ia o surgimento do use, enquanto antepassado mais direto do trust, pela entrega de um bem por uma pessoa (transferor) a outra (transferee of uses) para o administrar em prol de um terceiro (plaintiff), conferida a ele força jurídica principalmente pela atuação do Chanceler (p. 78-9). A seguir, passa-se a elencar e discutir os conceitos correntes para o "trust", tanto no contexto anglo-saxão como dentre os estudiosos de contextos distintos, para optar pela conceituação de D. M. Waters, segundo a qual consistiria o instituto sob análise em uma relação triangular enre o instituidor (settlor), que transfere ao trustee a titularidade de determinado patrimônio para o gerir em favor de um beneficiário (p. 111). Passa a identificar os mais variados critérios de classificação dos trusts no Common Law, comparando-o com relações jurídicas similares, como a agency (p. 136-8), o contract (p. 138-140), o loan (p. 140), o bailment (p. 141) e a corporation (p. 142-3). A seguir, debate a presença de direitos de propriedade simultâneos entre o trustee e o beneficiary (p. 143-7). Ingressa-se nas aplicações do instituto na atualidade, salientando-se sua versatilidade ou "flexibilidade" (p. 147-8), indicando os purpose trusts, os charitable trusts, os pension trusts, os investment trusts, os security trusts, os holding trusts, os land trusts e as modalidades adotadas em jurisdições off shore, buscando, em regra, a diminuição de ônus fiscais (p. 173-5). Para se demonstrar a compatibilidade do instituto com os sistemas de Civil Law, faz-se um profundo exame dos negócios fiduciários. É trabalhada, em primeiro lugar, a fidúcia no direito romano. Ingressa-se no tratamento das instituições similares no Direito germânico medieval para, logo depois, verificar-se a aproximação não só do trust como do mortgage com os negócios fiduciários. O papel que estes desempenham no dotar as obrigações de maiores e mais efetivas garantias, respondendo à dinâmica da vida contemporânea (p. 216), é analisado à luz do Direito Comparado, procedida a conceituação e a decomposição do negócio fiduciário em seus elementos, distinguindo-se-o de institutos afins, para chegar-se à sua prática hodierna, elencando suas manifestações como venda com finalidade de garantia, venda com finalidade de gestão, venda para recomposição de patrimônio, venda com reserva de domínio, doação fiduciária, cessão fiduciária de crédito, endosso fiduciário de títulos de crédito, titularidade fiduciária de direitos de acionista, examinando o tratamento jurisprudencial do tema, para ao cabo, apontar não só para a validade, em face do Direito brasileiro, do negócio fiduciário como para a sua inconfundibilidade com o trust, e mesmo a impossibilidade de ser sucedâneo deste (p. 348-9).  Em seguida, verificam-se as instituições fiduciárias assimiláveis ao trust no Direito Comparado, iniciando-se pela substituição fideicomissária, nascida no Direito das Sucessões e muito discutida após a vitória dos ideais da Revolução Francesa, mantida, entretanto, em virtude da existência de temperamentos, como a temporariedade, a herança legítima e a registrabilidade das transações sobre imóveis, identificando várias possibilidades de contribuição do instituto à implementação do trust no Brasil. A Comissão Mercantil é também estudada em minúcia, e chega-se à conclusão da parca possibilidade de adaptação para o efeito de implementação do trust (p. 430). A alienação fiduciária em garantia, tanto em sua feição originária, posta pela Lei 4.728, de 1965, até chegar à respectiva extensão aos bens imóveis pela Lei 9.514, de 1997, vista como inspirada no trust é esmiuçada para se demonstrar que, a despeito de semelhanças em termos de finalidade prática, de facilitar o acesso ao crédito para a aquisição de bens, há diferenças estruturais (p. 436-7). Realiza-se, ainda, o exame acerca do mandato em causa própria, cujo repúdio inicial veio a dar lugar à aceitação para que se flexibilizasse a possibilidade de transferência de títulos representativos de direitos obrigacionais, com a aglização dos negócios, e chega-se à conclusão de que o aludido instituto estaria longe de constituir, ante os debates travados, base para a adoção do trust (p. 511). Procede-se ao exame das características da gestão de negócios, na qual, embora identificadas semelhanças com uma das modalidades do trust, o constructive trust, não se considera nela presente um alicerce para a introdução do instituto entre nós (p. 522). Trata-se, depois, das semelhanças ao trustee dos agentes fiduciários no mercado de capitais. Pelo aspecto da possibilidade das fundações administrarem bens com a finalidade de beneficiar a terceiros, examinam-se eventuais aproximações delas ao trust, chegando-se à conclusão de que a complexidade do regime delas poderia, especialmente pela necessidade de fiscalização do pelo Ministério Público, inviabilizar a própria adoção do trust. Ao cabo, são esmiuçadas as alternativas para a respectiva implementação no Direito brasileiro.
A obra é extremamente rica em detalhes e, como dito na introdução da presente resenha, vem mui oportunamente, até mesmo pelo estabelecimento de pontes entre sistemas jurídicos diferentes para o fim de demonstrar o próprio esmaecimento das distinções entre eles. O respectivo valor, contudo, não implica integral concordância com várias dentre as proposições, a iniciar-se pelo prático entusiasmo com o Common Law, quando a principal vantagem do Civil Law, assinalada mesmo por um cultor das tradições inglesas tão típico como Jeremy Bentham, está na mais fácil calculabilidade, vez que a previsão em abstrato dos comandos permite saber-se, com maior segurança, as consequências das condutas que se praticarem. Também a taxatividade legal dos direitos reais, no que pese atender a uma expectativa de maiores garantias para o cumprimento das obrigações, precisamente pelo caráter de sujeição passiva oponível a todo o ser humano pelo respectivo titular é que se considera, no âmbito do Civil Law, como mais apta a proteger a liberdade de cada indivíduo. O entusiasmo com a lex mercatoria também não é compartilhado pelo resenhista, que já publicou textos a seu respeito, nos quais demonstrou que a própria liberdade individual demanda, para que seja adequadamente protegida, a existência de interesses indisponíveis, sob pena de cada ser humano valer apenas pela função econômica que desempenhe. Interessa, outrossim, a obra não somente ao Direito Civil, como também ao Direito Econômico, já que se apresenta a possibilidade da adoção do instituto como um dos meios para a atração de capitais estrangeiros, viabilizando cada vez mais as trocas internacionais, além da possibilidade de este instrumento  negocial ser apto a definir a capacidade de os seus partícipes conformarem as relações de mercado.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Verdade, direito, autoridade - as grandes tensões constitucionais

HÄBERLE, Peter. Os problemas da verdade no Estado constitucional. Trad. Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.


Nos tempos atuais, quando se fala dos debates em torno de "Comissões da Verdade", esquecimentos, memórias, terrorismos, resistências, justificativas e não justificativas, pertinência ou impertinência do juízo moral comum à política, é de intuitiva oportunidade a obra do Professor da Universidade de Bayreuth questionando o papel da "Verdade" enquanto valor no campo político-constitucional, diante de uma tradição que, pelo menos desde Platão, tomava a "mentira" como um dos meios úteis para manter a tranquilidade na polis. A diferença entre a produção científica, que tem compromisso com a verdade, sempre e sempre, e o exercício do poder - seja no âmbito de um Estado, seja no âmbito de uma grande companhia -, que tem compromisso com a conveniência, ao ponto de a mentira poder ser tida como útil, não é recente: Nicolau Maquiavel, quando o Papa era Alexandre VI, embora tivesse sido mais explícito n' O príncipe, mais não fez que aprofundar uma passagem do Livro III da República, de Platão.
 
Para o enfrentamento do tema, o Prof. Häberle rastreia a presença da palavra "verdade" nos textos legislativos, notadamente a Lei Fundamental de Bonn e as Constituições dos Länder, ligando-a a questões como a educação, a livre pesquisa científica, ao registro imparcial das sessões parlamentares, passando, logo em seguida, ao tema - que será recorrente ao longo da obra, mediante comparações com as comissões congêneres na Europa do Leste, na África do Sul, na Guatemala e no Haiti - do estabelecimento, por ato do Secretário-Geral da ONU, em 1992, de comissão da verdade em El Salvador, composta por membros de diferentes nações, para apurar a prática de crimes contra a humanidade durante a guerra civil e assegurar o processo de transição para a democracia (p. 41-2), discutindo a questão do papel das comissões parlamentares de inquérito enquanto meios de apuração da verdade ou armas de luta política, salientando a importância que o dado de haver em maio de 1993 o candidato a Primeiro-Ministro do Partido Social-Democrata sido pilhado em falta com a verdade perante um órgão desta natureza teve na renúncia respectiva, comparando este último fato com o escândalo Watergate, ocorrido nos EUA (p. 44-5). Refere, em termos de Direito Comparado, as Constituições do Reino da Suécia de 1809, da Turquia de 1982 e da Grécia de 1975 (p. 45). No âmbito dos textos legislativos ordinários, trabalha-se basicamente a legislação processual, em matéria de prova (p. 46-8), bem como o direito canônico (p. 49-50), e as questões que se colocam no Direito Internacional Público, sobretudo quando se trate das condutas que se têm como permitidas ou não em guerra, especialmente na obra de Grotius (p. 51-2), e as influências dos debates da verdade no âmbito interno constitucional dos Estados na disciplina do Direito dos Tratados, na Convenção das Nações Unidas sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, no Preâmbulo da Convenção da UNESCO e também no da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (p. 54-5). Segue referindo a descrição do papel que o engodo desempenha no contexto do totalitarismo feita por Vaclav Havel, pondo o compromisso de cada qual com a verdade como a expressão da co-responsabilidade com o destino do todo e com a própria integridade do espaço público (p. 56), passando pela indicação dos momentos em que a verdade comparece como um valor, a partir do Antigo Testamento, e no âmbito da teologia cristã (p. 59), para indicar as aproximações e os afastamentos entre as noções filosóficas - a distinção entre as verdades da fé e da filosofia, cara aos discípulos de Averróis (p. 63) e que, modo certo, resolveu o problema de os Doutores da Igreja reportarem-se a autoridades não cristãs, embora tenha preparado o terreno para a cisão entre a religião e a filosofia (p. 67) - ou científicas - o processo de Galileu Galilei é mencionado, bem como a sua reabilitação pelo Papa João Paulo II (p. 62) -, o compromisso kantiano com a verdade como um dever absoluto e a discussão posta tanto por Hegel quanto por Popper (pensador que mais influiu no pensamento do autor ora resenhado - nota do resenhista) e Habermas (p. 64-6). Toma a questão da inacessibilidade à verdade "em si mesma", substituindo-se-a pela "busca da verdade" a partir da visão de um Wilhelm von Humboldt, bem como do niilismo de um Paul Feyerabend e do ceticismo de um Friedrich Nietzsche (p. 66-7), para, logo em seguida, versar o papel da verdade nas artes, sobretudo na poesia, na música e na pintura, evocando Schiller, Uhland, Theodor Storm, Goethe e Shakespeare (p. 71-92), em relação à primeira, Wolfgang Amadeus Mozart, especificamente em razão da famosa fala de Pamina ("A verdade, ainda que dizê-la seja um crime!") em A flauta mágica, o pianista Alfred Brendel, Ludwig van Beethoven e Richard Strauss (70-1), em relação à segunda, e a alegoria de Friedrich Holder (p. 70), em relação à terceira. São trazidas, logo depois, reflexões sobre a instalação das comissões da verdade para a apuração dos fatos ocorridos na Alemanha Oriental, os problemas relacionados à concorrência de pretensões de grupos distintos em face das propriedades privadas a serem restituídas (p. 94), a superação do próprio problema do "recalque coletivo" ocorrido a partir de 1945, as manifestações de nostalgia do regime da Alemanha Oriental nos anos 1993-1994 (p. 97), que tornaram, no ver do autor, imperiosa a instalação de tais comissões e a edição de leis de transparência. Aponta, outrossim, como caminhos percorridos no constitucionalismo da Europa do Leste, após a queda do Muro de Berlim (p. 99), o estabelecimento de cláusulas protetoras do pluralismo, como a interdição de que se punam, em nome de uma cosmovisão oficial, as livres convicções de cada qual (p. 100), como a adoção do pluralismo partidário (p. 100-1), como o dever fundamental dos ocupantes de cargos públicos com a verdade, como a circunscrição da palavra final sobre as verdades científicas aos eruditos - presente na Constituição da Hungria, e que não deixa de provocar no autor resenhado uma estranheza, qualificando tal providência como "W. von Humboldt em 'salsa húngara pós-comunista'" - (p. 101), como a proibição da monopolização das fontes de informação e dos meios de comunicação de massa, seja pelos particulares, seja pelo Estado, como a interdição a prejulgamento nos processos e a garantia do direito à prova (p. 102), como a interdição a que se confundam o Estado e o partido (p. 102-3). Toma-se o protótipo do Estado constitucional aquele que arreda os modelos totalitários de quaisquer cores, as "pretensões fundamentalistas de verdade", os monopólios de informação e as visões de mundo imutáveis, não se estabelecendo sobre verdades preordenadas, mas na eterna busca da verdade (p. 105). Mesmo tendo a falseabilidade das proposições como critério da verdade, mesmo tendo-se a verdade como um dado poliédrico, um diamante com brilho por todos os lados, isto não significa a adoção de um relativismo à plena, pois o Estado constitucional se autonegaria, por exemplo, ao admitir a instauração do totalitarismo, ou se não existissem as denominadas cláusulas pétreas, ou "garantias de eternidade" (p. 106-7), e dá o investimento na educação como meio eficaz para dar concreção a esses limites, e isto somente pode estar vinculado ao desiderato da busca da verdade, meio de conexão das três liberdades intelectuais fundamentais, quais sejam, a liberdade de religião, a liberdade das artes e a liberdade das ciências (p. 108-9). Tal desiderato somente se pode executar com a criação de um ambiente propício para tanto, e isto somente se pode dar no seio de uma sociedade pluralista, embora a própria investigação da verdade possa, por motivos éticos, comportar limites, como é o caso da proibição da obtenção de informações mediante o uso de tortura ou de meios voltados ao embotamento da consciência do interrogando (p. 112). Colocam-se, a seguir, as questões da verdade no seio da democracia pluralista, pelas tensões que se estabelecem na formação da opinião pública, seja pela questão da oposição entre a formação da maioria e a "verdade em si mesma" (quantidade/qualidade), a origem da lei na autoridade e não na verdade, a questão da concorrência das versões no que tange à atuação dos meios de comunicação, que se caracterizaria por uma luta pública das ideias, somente factível à plena em existindo certa igualdade no acesso a eles (p. 113-4), ressaltando a ênfase do debate na Alemanha no zelo jornalístico na apuração dos fatos e na efetividade do direito de resposta (p. 115), bem como na delimitação do excessivo poder de mercado das televisões privadas (p. 117). A questão da proibição constitucional da mentira e, ao mesmo tempo, da possibilidade de se incidir no erro até que seja demonstrado e da mentira em estado de necessidade, seja pelo silêncio, seja pela expressão inverídica em si mesma, quando se esteja no contexto ditatorial ou totalitário (118-120). Também entra em discussão o papel das "ficções jurídicas" enquanto meios de operacionalizar determinados valores jurídicos (p. 121-2). Ainda assim, a busca da verdade se coloca como um "valor cultural" em contraposição ao totalitarismo e vem a, cada vez mais, conectar-se à temática dos direitos humanos (p. 123-4). A partir daí, encaminha-se para a questão do que importe, para o jurista, em relação à temática da verdade, trabalhando as regiões "cultural", ligada às interpretações e projetos de mundo de cada qual, e a "política", que estaria ligada à presença do "outro" e o respeito por sua liberdade, propostas por Rüdiger Safranski, com mitigações que se colocariam em termos de uma política de direitos fundamentais que conduziria ao estabelecimento das condições para que a verdade vicejasse (p. 125-6). Destarte, o jurista, mesmo de posse do conhecimento da discussão filosófica acerca da verdade, valeria tomar em consideração o dado de que o problema da verdade se colocaria a partir das premissas postas no interior de cada uma das ciências. Para o Direito, ao lado da proibição da mentira em relação à dignidade da pessoa humana, por decorrência desta mesma dignidade, cada qual teria o direito à busca da verdade, e isto pressuporia tanto a não-violência (o que seria assegurado pelo monopólio estatal da força) "quanto a tolerância, cultura, proteção à natureza e também às gerações futuras", sem que o Estado pretenda "curar" a possibilidade do fracasso e do erro (p. 128).  A seguir, anexa-se o balanço realizado pelo autor cinco anos após as reflexões anteriores terem sido publicadas na Alemanha, referindo especialmente o trabalho das comissões da verdade constituídas na África do Sul em relação ao apartheid, na República Federal da Alemanha, no que tange à atuação da Stasi, na Polônia, com sua Lei de Transparência, na Republica Tcheca e na Itália, bem como na América Latina, as questões do emprego das mentiras como estratégia governamental, evocando os casos de Gorbatchov, de François Mitterrand e de Clinton, o tema relacionado com o papel da mídia, distinguindo-se entre a verdade jornalística e a verdade judiciária. Coloca-se, também, a questão das falsificações no âmbito da produção científica para o fim de obtenção de recursos financeiros, o crescimento das discussões filosóficas e jurídico-filosóficas acerca da verdade entre 1995 e 2001, o estabelecimento de quatro caminhos para se chegar ao conhecimento da verdade em relação aos antigos regimes comunistas.

Nem todas as proposições contidas nesta obra contam com a minha adesão: o conceito de "ideologia" que nela se contém é empregado no sentido que a tradição mannheimiana denomina "forte", o de uma distorção da realidade voltada a fundamentar as relações de poder, quando me parece, justamente pela falibilidade humana, mais adequado o sentido "fraco", o de uma cosmovisão dominante - independentemente de suas virtudes e defeitos - em determinado meio social, a que se opõe a "utopia", que é a cosmovisão que aspira a tornar-se dominante. Por sinal, o sentido "forte" de "ideologia" traduz um dos traços de aproximação entre visões de mundo que se pretendem francamente antagônicas, a saber, a dos tributários do "materialismo histórico" e a dos herdeiros do Colóquio de Mont Pélérin. Também não conta com minha adesão o viés popperiano do autor, vez que o referencial weberiano me parece mais adequado à materialização do escopo iluminista de busca da verdade. Estes e outros pequenos senões não lhe comprometem o mérito, entretanto. Os cultores de todos os ramos do Direito têm muito a se abeberar nesta obra.  Para o juseconomista, a sua importância não se coloca somente em termos do papel que a informação tem como matéria prima da decisão em geral, e da decisão econômica em particular, seja de investir, seja de consumir, necessitando, pois, de dados verdadeiros para que os resultados sejam os mais próximos daquilo que se pretende ou do papel da ciência enquanto responsável pelo aperfeiçoamento da técnica e, portanto, pela necessidade de seus resultados se mostrarem confiáveis na solução dos problemas que se propõe a resolver, e tampouco no que tange às questões concernentes à disciplina da atuação da mídia enquanto setor da atividade empresarial. Com efeito, basta recordar que o artigo 174 da Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como característica do plano econômico o ser "indicativo" para o setor privado e "vinculante" para o setor público, traduzindo a indicação o rumo a ser imprimido pelo Poder Público à política econômica que adotar, dando os referenciais, pois, ao particular para orientar a respectiva atividade econômica. Por outro lado, tem-se discutido, em relação ao próprio funcionamento do mercado, a assimetria de informações enquanto elemento perturbador do equilíbrio entre os agentes econômicos a ser devidamente enfrentado pelo Poder Público. A própria reflexão em torno da revolta dos fatos econômicos contra a lei - recordando, aqui, o clássico publicado por Gaston Morin em 1920 -, impondo solução que, mesmo aparentemente antagônica à literalidade do comando isolado, confira efetividade ao ordenamento jurídico como um todo, qual ocorreu logo após a I Guerra, levando Justus Wilhelm Hedemann a identificar os limites do Direito Civil clássico e a proclamar o nascimento de um Direito Econômico, e a urdidura, pelo pioneiro deste no Brasil, Professor Washington Peluso Albino de Souza, da regra da primazia da realidade social, aponta, em si mesma, para os limites da operacionalidade das ficções. Embora estes temas não tenham sido tratados na obra ora resenhada, pode ela perfeitamente servir como ponto de partida para uma discussão racional deles e de quaisquer outros que, por vezes, têm a respectiva compreensão desviada pelo partidarismo.